Vestido branco curtinho, crepe de seda ... Como ela ficava linda com esse vestido !
Cheguei a sonhar muitas vezes com esta imagem. Tinha um corpo bonito, pernas branquinhas, que chegavam até a confundirem-se com o próprio vestido.
Seus cabelos eram finos, escorridos, não tinham a ousadia de esbarrarem no ombro, tímidos, muitas vezes desarrumados pelo cansaço...
Sua face, serena e triste, olhos de pupilas saltadas, como se estivesse sempre a espera de algo que os deslumbrasse, a espera de uma alegria, mesmo que passageira...
Calada, não reclamava, apenas ficava compenetrada no seu trabalho, absolta em pensamentos, só seus. Singelos detalhes que guardei na lembrança.
Vejo como se fosse hoje ela sorrindo, toda faceira, quando transformara aquele pedacinho de pano branco, numa deslumbrante veste, uma pérola. Provavelmente fora feito num dia de rara felicidade, poucas de uma vida de incertezas e amarguras. Era o vestido que mais gostava e com certeza o que mais lhe caía bem.
Me deparo muitas vezes, no decorrer dos longos anos que acumulo na vida, com a lembrança daquele sorriso tímido de anjo ferido. Tinha a delicadeza de uma flor, não de uma suprema rosa, cujos espinhos protegem, mas como uma margarida, que se curva ao vento, chegando a se deitar no solo num dia de tempestade, mas que não se quebra, sempre se levanta e continua firme e forte na sua missão de embelezar mais o mundo.
Quantas foram as vezes que a encontrei escondida, enxugando as lágrimas com trapos de pano, retalhos das suas próprias desilusões, esparramados pelo chão de cimento frio. As vezes quando ficava furiosa, chegava a esbravejar um pouco, mas no final das contas, terminava por calar-se, engolindo sua dor, sua decepção com a vida, que lhe estava sendo tão cruel. Vida de luta, essa era a dela.
Seu dom de transformar já lhe era íntimo. Lindos foram os encantos que teceu em sua pequena máquina de costura por tantos anos, todos os seus anos. Amigas de longas datas vinham buscar a magia das suas mãos e levavam consigo brilhantes. Sonhos envolvidos em papel de embrulho, feito com muito capricho. Parecia que a cada vestido que criava, colocava para fora toda sua alegria, toda sua força. Maneira que havia encontrado de exibir-se, que não em seu próprio espelho da alma.
Garotinha em corpo de mulher, atirada à vida de susto, sem a menor preparação. Não sabia ao certo o que esperar, mas a vida lhe cobrava atitudes para que pudesse sobreviver na selva de incertezas.
Eu acompanhava seus movimentos. Ainda não tinha maturidade suficiente para compreender seu sofrimento, mas percebia quando no final da tarde, seu corpo cansado recostava-se no sofá da sala e pedia colo. Debruçava sua cabeça em mim e procurava aninhar-se à espera de carinho. Eu lhe afagava os cabelos, desembaraçava-os com cuidado. Brincava de pentear os cachos e ela quieta, de olhos fechados, como se estivesse dormindo um sono tranquilo. Que delícia lembrar dela assim, tão serena, tão minha...
Queria poder voltar no tempo e dizer-lhe o quão vitoriosa ela sempre fora para mim, mas só agora, depois dos vários anos de minhas experiências, de sentir minhas próprias feridas expostas à tormenta dos erros cometidos, é que percebo quanto poderia ter aliviado a dor de suas tristezas, se tivesse sido mais próxima, se tivesse aprendido também a pedir colo. A sentia sobrecarregada, não tinha o direito de exigir ainda mais, mas estava errada, hoje sei.
Me vêm à mente, mais uma vez, o lindo vestido branco. Chave para a porta que nos unia. Ficava encantada com sua habilidade, com a precisão dos seus cortes. Queria aprender, fazer igual, mas era afoita, impaciente e não tinha paciência... ela até tentava as vezes me mostrar como se alinhavava, mas estava sempre com pressa, de compromisso marcado... pena não ter aproveitado a chance...
Um dia, quando acordei, aquela pérola de cetim estava dobrada num cantinho de minha cama, entre os lençóis e minha colcha de retalhos, bem passado e cheiroso. A princípio fiquei surpresa, mas eu sabia o que ela estava querendo dizer colocando ele ali. Agora ele era meu, só meu. Ela sabia o quanto eu o adorava, mas o que não sabia mesmo, é que eu admirava mais ainda, quando ela o vestia.
Corri até ela para perguntar-lhe e num sorriso meigo me recebeu nos braços. Estava feliz, seus olhos brilhavam e satisfeita entregava-me um de seus mais valiosos bens, pois sabia que para mim, teria tanto valor quanto teve a tanto tempo para ela. Eu nem mesmo perguntara-lhe o porque, simplesmente o vestia e estava tão radiante que mal podia me conter. Este momento em nossas vidas mudou todo um contexto. Talvez ela não soubesse como mostrar-me que poderia contar com ela, talvez nem sequer tivesse aprendido a fazê-lo, mas com seu jeito simples de agir, me mostrou que poderia confiar nela. Nós duas pudemos compreender.
Mamãe era apenas uma menina dengosa em corpo de mulher. Quase nunca falava de si mesma e ficava sempre sozinha em seus aposentos, quieta, entretida com seus moldes. Artesã de sonhos.
Ela costumava usar saias curtas, sentia-se bem assim e eu adorava sua juventude translúcida. Mas algo estava acontecendo, percebia que o comprimento de suas roupas descia, seus joelhos passavam a ser cobertos pela dura realidade que os anos lhe entregavam com a idade. Ela envelhecia e eu não percebia, mas ela sim e sentia cada dia que passava.
Aparentava já o cansaço dos anos. Enfraquecida, exausta pela luta diária, mas bastava que precisassem dela mais uma vez e pronto, ia embora toda dor e ineficiência destes instantes. Amava o que fazia, apesar de já ter acumulado ano após ano, debruçada em sua máquina de costura, toda sua juventude.
Várias são as lembranças ternas de mamãe. As vezes íamos nas festinhas de família, como era legal vê-la feliz. Brincava, dançava muito. As vezes bebia um pouquinho a mais e parecia mesmo uma adolescente, mais jovem do que eu aos meus 15 anos. Por algumas horas, parecia ter se livrado das frustrações, das tristezas, mas assim que passava o efeito do álcool, os risos se transformavam em pranto novamente, recostava-se num canto e lhe vinham a lembrança dos sonhos destruídos pelo caminho, as perdas de uma existência.
Todos sabiam que no fundo, só o que precisava, era esvaziar um pouco o coração das mágoas.
Ela era minha amiga, embora eu a olhasse apenas como mãe. Era minha companheira de bailinhos na juventude, tinha orgulho de exibi-la. Quando papai proibia-me de ir sozinha, ela me acompanhava, porque sabia o quanto era importante para mim. Cúmplice, ficava entusiasmada com a alegria dos jovens, com a música e o divertimento, minha amiga, só minha de mais ninguém... Conduzia a vida de todos nós com dignidade, acolhia-nos nos momentos de aflição, só mesmo esquecia-se de atender a si mesma. Pedia muito pouco, recebia menos ainda...
Uma vez, quando eu chegava da escola, agora já cursando o curso noturno, eu a surpreendi folheando minhas revistas de orientação sexual para jovens. Tinha fotos de casais nus no ato do amor, em suas mais diversificadas posições. Ela corou, fechou a revista rapidamente como se estivesse fazendo coisa feia ou proibida. Tentei dizer-lhe que não havia problema algum, mas na sua ingenuidade, ficou sem ação, não sabia como encarar-me e percebi que a simplicidade da sua vida, se resumia à mesmice do cotidiano. Vivera muito pouco, muito menos do que tinha vontade de conhecer. Vi que estava constrangida demais e não insisti. Acho mesmo que talvez tenha até sido mútuo o constrangimento. Calei-me então e fingimos o resto da noite, que nada tivesse acontecido.
Mamãe viveu toda sua vida com um único amor, não que tenha sido o único que amou, mas soube ser fiel e feliz à sua maneira, não tinha eu portanto, o direito de mostrar-lhe o quão pouco teve por todos aqueles anos ao lado do homem, ao qual entregou todos os seus sonhos, que foram um a um desfeitos.
Queria também poder ter tido a coragem de dividir com ela meu primeiro êxtase, sei que teria vibrado em saber que sua menina já havia se transformado em mulher. Já tinha eu, desde aquela época, vontade de ser muito feliz, de compartilhar minha alegria por estar amando. Queria muito ser feliz por nós duas, mas revelar-lhe íntimos segredos, precisava de mim um pouco mais de experiência e de maturidade.
Poucas lhe eram as vaidades, um custo para convencer-lhe a passar um batom, achava sua boca muito pequena e sem graça, mas eu adorava brincar e pintar seu rosto com blush, ficava vistosa, de alto astral. As vezes sozinha dava seus primeiros passos, se maquiava toda e saía. Tinha uma beleza alva, traços puros e simples, seus pés então, delicados como de um bebê, mal lhe permitiam sustentar-se sobre saltos muito altos, embora fosse uma de suas secretas paixões.
Existem várias histórias de lutas pessoais, muitas com finais felizes, a da minha mãe não, foi uma lição de vida sofrida, muito trabalho, muita luta, muitas lágrimas...
Ouço ainda o som de sua máquina de costura, nas longas tardes quando a tenho no pensamento. Uma lembrança doce, sem dor, porque por mais distante que possa estar, mais do que nunca, será parte muito importante de mim, para sempre.
Conjugo o amor de todas as formas e tento ser feliz, tanto quanto ela desejou que eu fosse por toda vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário